NIILISMO
|
Nihil Ilustration |
O niilismo pode ser definido como a implosão da subjetividade.
Alternativamente, e sendo um pouco mais claro, podemos defini-lo como
uma descrença em qualquer fundamentação metafísica para a existência
humana. Não se trata, entretanto, de algo difícil de ser definido, mas
de ser apreendido. Por ser uma noção bastante ampla e abstrata, existe
muita confusão em torno dela. Vejamos alguns dos principais motivos
disso. Primeiro, o niilismo é vago em si mesmo, pois vem de
nihil, que significa
nada. A palavra
niilismo,
que poderia ser traduzida como “nadismo”, de imediato, não nos dá
qualquer ideia do que se trata. Segundo, o niilismo não possui qualquer
conteúdo positivo. Por se tratar de uma postura negativa, só
conseguiremos entendê-la depois que tivermos consciência do que ela
nega, e por isso a compreensão do niilismo envolve muitos outros
conceitos; ele só se tornará visível depois que esboçarmos seu contexto.
Por fim, o niilismo também não recebeu, historicamente, um emprego
consistente, sendo que cada pensador ou movimento o interpretou de modo
bastante particular, quase sempre com um pano de fundo ideológico, na
tentativa míope de justificar um niilismo ativo e militante.
Em geral, vemos o niilismo associado a outras ideias, denotando seu
vazio inerente. Por exemplo, niilismo político seria mais ou menos
equivalente ao anarquismo, repudiando a crença de que este ou aquele
sistema político nos conduziria ao progresso, o qual não passaria de um
sonho mentiroso. O niilismo moral equivaleria à negação da existência de
referenciais morais objetivos, ou seja, de valores bons ou maus em si
mesmos. O niilismo epistemológico, por sua vez, seria a afirmação de que
nada pode ser conhecido ou comunicado. Portanto, vemos que associar
qualquer noção ao niilismo não é exatamente um elogio, mas algo como
colocar ao seu lado uma placa dizendo: aqui não há nada — principalmente nada do que se acredita haver.
|
Nihil Ilustration II |
O niilismo, todavia, não é só um termo que justapomos a qualquer
ideia que nos desagrade, a fim de desmerecê-la. Seu poder de apontar o
vazio das coisas não pode ser usado como uma arma, pois, quando se
dispara o tiro de nada, automaticamente deixa de existir a arma, e a
coisa toda perde o sentido. O niilismo, sendo um processo radical de
crítica, não pode ser usado parcialmente. Não podemos, por exemplo, usar
o niilismo moral para refutar valores específicos, com os quais não
simpatizamos, imaginando que os nossos próprios valores sobreviveriam à
crítica. Quando afirmamos que a moral não existe, isso implica que não
existem quaisquer valores, sejam os nossos valores, sejam os de nossos
oponentes. Com o niilismo moral, toda a moral é reduzida a nada,
inclusive a nossa. A redução da moral a nada, como vemos, está
respaldada não na gramática, mas na suposição de que a moral é vazia em
si mesma, de que ela não tem fundamentos reais e objetivos. Não se trata
de simpatizarmos ou não com a moral, mas da constatação segundo a qual
ela é um sonho, uma fantasmagoria inventada por nós próprios, não sendo
leis morais, portanto, mais relevantes que leis de trânsito.
Nós, entretanto, nos ocuparemos principalmente do niilismo existencial,
ou seja, a postura segundo a qual a existência, em si mesma, não tem
qualquer fundamento, valor, sentido ou finalidade. Segundo o niilismo
existencial, tudo o que existe carece de propósito, inclusive a vida.
Todas as ações, todos os sentimentos, todos os fatos são vazios em si
mesmos, desprovidos de qualquer significado. Nessa ótica, viver é algo
tão sem sentido quanto morrer, e estamos aqui pelo mesmo motivo que as
pedras: nenhum. Essa parece ser a categoria mais fundamental de
niilismo, em relação à qual os demais tipos tomam o aspecto de casos
particulares. Os niilismos moral e político, por exemplo, podem
claramente ser deduzidos do niilismo existencial — pois, se a própria
existência não tem valor, isso implica que nada tem valor, inclusive
valores morais, inclusive o progresso.
|
Nihil Ilustration III |
O único modo de compreender o niilismo existencial é através da
reflexão. O vazio da existência nunca poderia ser demonstrado através da
prática, ou apreendido por meio da experiência imediata. Se, por
exemplo, reduzíssemos nosso planeta a nada com bomba nuclear, isso não
demonstraria coisa alguma. A visão desse planeta despedaçado também não
provaria nada. Tal postura destrutiva prática faz pouco sentido, pois
equivale a tentar refutar um livro queimando-o. O niilismo existencial
se demonstra quando reduzimos o homem a nada, e para isso basta possuir
algum talento intelectual aliado à honestidade, pois o esvaziamento da
existência é a mera consequência de a entendermos. Não precisamos
degolar a humanidade inteira para provar que a vida carece de sentido.
Para reduzir o homem a nada, e compreender que isso demonstra o
niilismo existencial, temos de apreender o vazio objetivo da existência —
sendo óbvio que, na condição de sujeitos, só podemos fazê-lo
subjetivamente. O problema é que, no processo demonstrar que a
existência é vazia, somos o próprio vazio que estamos tentando apontar —
tentamos explicar que nós próprios não temos explicação. Parece
paradoxal, mas não é. Bastará que consigamos entender nós próprios como
um fato, e o niilismo se tornará praticamente uma obviedade. Só então
perceberemos que o niilismo não é, como a princípio pode parecer, uma
postura extremada, envolvendo algum tipo de revolta, mas apenas uma
visão honesta e sensata da realidade — uma visão tornada possível em
grande parte devido às descobertas científicas modernas. Com algumas
definições e explicações simples, podemos chegar a uma noção razoável da
ótica apresentada pelo niilismo existencial. Como o argumento é um
pouco longo, vamos por partes. Façamos algumas observações preliminares
sobre por que o niilismo nos parece algo tão incômodo.
|
Nihil Ilustration IV |
Muitos, por preconceito, têm medo do “vazio da existência”, mas esse
medo, em si mesmo, é algo completamente sem sentido, pois equivale a
temer aquilo que não existe; o vazio não é uma ameaça positiva. Senão,
vejamos:
Não existe vida em Vênus. Alguém se sente aterrorizado diante dessa afirmação? Dificilmente.
Não existem bancos em Marte.
Alguém empalidece diante disso? Também não. Suponhamos, entretanto, que
durante todas as nossas vidas houvéssemos trabalhado arduamente,
acreditando que todo o nosso esforço seria convertido em dinheiro num
banco em Marte. Agora sim nós nos sentiríamos ameaçados pela afirmação
de que nesse planeta não há, nunca houve banco algum, pois vivíamos em
função disso, acreditávamos nesse suposto dinheiro marciano como aquilo
que dava sentido às nossas vidas. Portanto, o que nos aterroriza não é o
vazio da existência, ou o vazio de bancos interplanetários — o que nos
enche de medo é a possibilidade de descobrir que estávamos completamente
equivocados em nossas crenças a respeito da realidade. Seria esmagadora
a consciência de havermos dado grande importância, de havermos dedicado
nossas vidas inteiras a algo que simplesmente não existe. É por isso
que estremecemos diante da afirmação de que a existência não tem
sentido, embora essa afirmação seja tão segura quanto a de que não há
dinheiro noutros planetas do sistema solar.
Resistimos ao niilismo não porque ele seja falso, mas porque
reorganizar nossa visão da realidade seria muito trabalhoso. Então, se
colocarmos nossos interesses pessoais de lado, veremos que o que nos
inquieta no niilismo é o fato de que ele nos confronta duramente com
nossa própria ingenuidade, com o fato de termos nos deixado enganar tão
grandiosamente que nossas vidas passaram a depender de mentiras, de
suposições imaginárias. Portanto, percebamos que, quando o niilismo
aponta essas mentiras, ele não está destruindo a realidade, e sim nossas
ilusões. Nessa ótica, o niilismo nada mais é que um exercício de
honestidade e imparcialidade, e apenas esvazia a realidade das ficções
que nunca existiram de fato. Essa honestidade pode ser dolorosa, mas é
um sinal de maturidade. Se a existência, despida de ilusões, nos parece
vazia, saibamos ao menos admitir que a culpa é nossa por termos nos
enchido delas. Se gostamos de nos enganar, tudo bem. Porém, se nosso
interesse for nos tornarmos capazes de lidar com a realidade como
adultos, sempre será preferível aceitar a existência tal qual é em si
mesma, ainda que isso signifique abrir mão de muitas de nossas crenças
mais arraigadas. É preferível viver num mundo sem sentido a acreditar
num sentido falso para o mundo, que aponta para lugar nenhum.
|
Nihil Ilustration V |
Texto por André Cancian
Alimente sua alma em : http://ateus.net/artigos/filosofia/niilismo/