Existe uma semelhança muito peculiar entre os ensinamentos da Magia
do Caos e do budismo. De fato, é possível encontrar similaridades entre
as linhas mais diversas e, a partir disso, montar um estudo comparativo.
Hoje iremos nos ater a analisar o que há de comum entre uma escola da
magia moderna e uma religião oriental.
No caoísmo ouve-se muito o
seguinte lema: “Nada é verdadeiro; tudo é permitido”. Uma das possíveis
interpretações dessa asserção seria a de que uma crença não expressa o
absoluto, mas seria meramente circunstancial, tendo como fim realizar
uma mudança de paradigma para atingir determinado objetivo. E, no
interior do paradigma adotado, você pode realizar todos os experimentos
possíveis, contanto que finja suficientemente bem que aquele processo é
verdadeiro. Essa prática é encontrada no bordão: “Finja, até que
atinja”.
Já no budismo existe o
conceito de “maya”, que seria uma projeção da realidade criada por nós.
Também fala-se em “vipallasa”, que seriam distorções ou alucinações que
podem ocorrer na percepção, na mente ou nas ideias. É dito que não há um
“eu” inerente (anatta) e que a impressão da existência seria uma
constituição de agregados mentais. Contudo, para destruir o karma e
atingir o nirvana, inicialmente você precisa do “paradigma da mente como
identidade” para “aniquilar a mente com a própria mente”.
Essa
concepção é muito semelhante à de que a “crença é uma ferramenta”, usada
na Magia do Caos. Através do “paradigma do palhaço”, poderia ser dito
que bastaria utilizar diferentes crenças como noção do absoluto, para
que se compreenda a não existência da percepção do absoluto, e assim
atingir uma espécie de “nirvana caoísta”.
Mas existe uma
“verdade”, uma “coisa em si” ou um Absoluto, como realidade
transcendental? O caoísta diz: “Eu não me importo!”. Buda diz: “Não
importa” (já que ele estava mais preocupado com as questões de caráter
pragmático do que com a ontologia). Então o caoísta dá um sorriso e
levanta sua mão: “Bate aqui, Buda!”, ou, segundo um famoso trecho do
Principia Discordia:
“GRANDE PATETA: Você é realmente sério, ou o quê?
MAL-2: Às vezes eu tomo como humor sério. Às vezes eu seriamente tomo como humor. De qualquer forma, isto é irrelevante.
GP: Talvez você apenas seja louco.
M2:
Não me diga! Mas não leve meus ensinamentos por falsos só porque sou
louco. A razão de eu ser louco é porque eles são verdadeiros.
GP: Éris é verdade?
M2: Tudo é verdade.
GP: Mesmo coisas falsas?
M2: Mesmo coisas falsas são verdade.
GP: E como pode ser isso?
M2: Eu não sei cara, eu não fiz isso”.
Ou ainda a frase, da mesma obra: “Eu tenho a crença inabalável de que é um erro ter crenças inabaláveis”. Digamos que algumas “crenças temporárias” se tornam úteis para resolver alguns paradoxos.
Segundo
Ajahn Thanissaro, Buda ensinou a doutrina do “não-eu” não como uma
afirmação metafísica, mas como uma estratégia para não se identificar
com os fenômenos. Conforme demonstra o seguinte trecho do Samyutta
Nikaya, Ananda Sutta:
“Tendo sentado a um lado, o
errante Vacchagotta disse ao Abençoado, ‘Então, Venerável Gotama, existe
um eu?’ Quando isso foi dito, o Abençoado ficou em silêncio. ‘Então,
não existe um eu?’ Uma segunda vez o Abençoado ficou em silêncio.
Então o errante Vacchagotta levantou-se do seu assento e partiu.
Em
seguida, não muito tempo após o errante Vacchagotta ter partido o
Venerável Ananda disse ao Abençoado, ‘Porque, senhor, o Abençoado não
respondeu quando foi perguntado pelo errante Vacchagotta?’ – ‘Ananda, se
eu, tendo sido perguntado pelo errante Vacchagotta se existe um eu,
tivesse respondido que existe um eu, isso estaria conforme com aqueles
brâmanes e contemplativos que são os expoentes da doutrina eternalista
(isto é, a idéia de que existe uma alma eterna). E se eu… tivesse
respondido que não existe um eu, isso estaria conforme com aqueles
brâmanes e contemplativos que são os expoentes do niilismo (isto é de
que a morte é a aniquilação da experiência). Se eu… tivesse respondido
que existe um eu, isso seria compatível com o surgimento do conhecimento
de que todos os fenômenos são não-eu?
‘Não, Senhor.’
‘E
se eu… tivesse respondido que não existe um eu, o confuso Vacchagotta
ficaria ainda mais confuso: “Aquele eu que eu costumava ter, agora não
existe?”
Então, note que, embora a noção de um “eu” possa
aprisionar, ela é necessária exatamente para que, através do nosso “eu”
perceba-se a noção do “não-eu”, e, a partir disso, aniquile-se tanto a
noção do “eu” como “não-eu”, como verdade.
No caoísmo, embora a
noção da “crença” possa aprisionar, ela é necessária para que através da
adoção de diferentes crenças obtenha-se a percepção de que a crença em
si não é verdade e nem mentira, mas uma percepção mental para o
entendimento de que “Nada é verdadeiro” (a crença é uma ferramenta); e
“Tudo é permitido” (expansão da nossa interferência mágica mental e
material através da manipulação contínua da visão da realidade).
No
budismo também existe a marca da existência chamada “anicca”
(impermanência ou inconstância), que reflete a realidade do samsara, ou a
roda do karma. No caoísmo, mergulha-se nessas diferentes impressões da
realidade através da mudança constante de paradigmas.
Poderíamos
dizer então que tanto budismo como caoísmo chegaram a conclusões muito
semelhantes acerca da realidade e encontraram soluções diferentes. Em
relação à primeira parte do lema de Hassan-i Sabbah, “Nada é
verdadeiro”, ambos concordam, no que concerne a nossas impressões da
verdade. Quanto ao “Tudo é permitido” é uma estratégia caoísta de
permanecer sempre saltitando de um paradigma a outro e, com essa
libertação da mente, obter sabedoria e poder.
Ambos utilizam bons
truques. Só podemos perceber a realidade através da limitação do nosso
aparelho cognitivo, como se fossem óculos que mostrassem uma verdade
embaçada. A solução do caoísta foi utilizar óculos de cores diferentes o
tempo todo, para nunca se esquecer que estamos sempre sentindo o mundo
com a limitação de nossos sentidos, e que nossas crenças não representam
a totalidade da existência. Já o budista usa o método de utilizar a
ilusão dos próprios óculos para tentar se livrar deles – os caoístas
achariam isso meio chato e sem graça, já que eles consideram que óculos
são muito chiques, especialmente os coloridos. Então por que parar de
usá-los? Eles preferem rabiscar diferentes desenhos na tela em branco em
vez de rasgá-la. E, para quem não gostou de nenhuma dessas opções,
sempre é possível comprar um quadro pronto na loja, para decorar sua
belíssima parede.
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